UMA VIAGEM PELOS SABORES DO PALÁCIO

Georges Auguste Escoffier, considerado o pai da gastronomia moderna e o rei doschefs, foi o responsável por, do final do século XIX até a emergência da nouvelle cuisine, no século XX, tornar a França referência e modelo de classe e refinamento à mesa, assim como já acontecia em outras esferas da vida social, tal como na moda, com a alta costura. Atuando em prol da supremacia da culinária francesa no ocidente, Escoffier defende que “o que faz a força da cozinha francesa é o gosto certo e iluminado que a distingue; são os cuidados que cercam suas menores preparações, a minúcia com que opera para produzir nos convivas uma impressão sensorial plena”. E completa advertindo que “suprimir ou negligenciar isso é por fim à nossa supremacia”.

Escoffier

Talentoso, disciplinado, organizado, criativo e inovador, Escoffier abandona as composições culinárias dotadas de elaboração, sofisticação e artificialismo que notabilizaram seu antecessor Marie-Antoine Carême, as quais eram usadas como peças de adorno de centros de mesa pela alta sociedade parisiense, e dedica-se a renovar os métodos da culinária francesa, simplificando e modernizando o estilo de Carême, o chef dos reis.

Influenciado pelo período em que atuou como cozinheiro do exército na Guerra Franco-Prussiana, Escoffier promove a organização da cozinha, a partir da criação de brigadas de trabalho, demarcando, nesse ambiente, por meio de uma lógica hierárquica, funções e setores. Foi também o responsável por introduzir o conceito de serviço à russa, que constitui em apresentar um prato de cada vez seguindo a ordem do menu, em substituição ao serviço à francesa, caracterizado por servir todos os pratos ao mesmo tempo.

Carême

Embora muito cedo já considerasse as mulheres como “juízas de sua arte”, reconhecendo-lhes a sensibilidade e a exigência aguçadas à mesa, Escoffier defendia a cozinha profissional e a alta gastronomia como universos exclusivamente masculinos. Acreditava que ao homem, graças ao seu caráter pragmático, cabia a realização, ao passo que à mulher, a contemplação artística. Mas parecia admitir que, em algumas mulheres, dotadas de inteligência, ambição e iniciativa singulares, existia algo além. Talvez por essa razão buscasse com essas mulheres se relacionar, embora as temesse.

Danièle Delpeuch

Possivelmente, Danièle Delpeuch, agricultora e cozinheira autodidata, teria sido uma dessas mulheres, caso tivesse vivido no mesmo período em que Escoffier e com ele tivesse se encontrado. Delpeuch, em 1988, foi procurada em seu sítio na Dordonha, região do interior da França, por funcionários do governo francês que lhe apresentaram uma proposta inusitada: tornar-se a chef particular do presidente François Mitterrand. Tratando-se de um convite ao qual não cabiam recusas, Delpeuch deixa seu sítio para habitar o Palácio do Eliseu, com o compromisso de atender ao desejo do Presidente de revisitar o sabor de sua infância, de redescobrir o prazer pela via da simplicidade.

“Os Sabores do Palácio”

O filme “Os Sabores do Palácio”, dirigido por Christian Vincent e lançado em 2012, retrata essa história mesclando realidade e fantasia, a partir da atuação dos atores Catherine Frot (Hortense Laborie) e Jean d’Ormesson, representando, respectivamente, Danièle Delpeuch e o Presidente da França François Mitterand. Cansado de ser atendido, ao longo de seu primeiro mandato, pela culinária palaciana, o Presidente, em seu segundo mandato, manifesta o anseio por mudanças no cardápio, que contemplem culinária caseira tradicional. Inicia-se, com essa missão, a trajetória de Hortense no Palácio, onde encontra um ambiente marcadamente burocrata, masculino e hostil.
“Os Sabores do Palácio”

Enfrentando burocratas e chefs adestrados a obedecerem normas e resistentes a mudanças, Hortense, com sua culinária simples, mas repleta de ingredientes nobres e de sabor, encanta o Presidente, já cansado de pratos que privilegiavam elaborações e arranjos sofisticados, próprios do ritual palaciano. A simplicidade é o elemento que promove a ligação afetuosa e respeitosa entre Hortense e o Presidente. A paixão pela culinária e  a simplicidade na finalização dos pratos, aliadas à nobreza dos ingredientes empregados, despertam no Presidente lembranças capazes de conduzi-lo à sua infância e propiciar-lhe a oportunidade de experimentar, novamente, o lúdico e o prazer.

“Os Sabores do Palácio”

A partir do contraste estabelecido entre artificialismo e naturalidade, visibilidade e discrição, luxo e singeleza, norma e subversão, público e privado, serve-se a simplicidade como o principal ingrediente da história narrada. À cozinha particular do Presidente, de dimensões acanhadas e localizada no subsolo do Palácio, distante dos holofotes da pompa e abaixo das práticas e decisões políticas, contrapõe-se a cozinha geral do Palácio, ampla, tumultuada, repleta de homens atuando por seções e funções rigidamente estabelecidas e comandados por um chef tradicional da casa. Longe da movimentação palaciana, Hortense e seu único ajudante (Arthur Dupont) tecem uma relação de cumplicidade, respeito e afeto, a partir das receitas prazerosamente compartilhadas e experimentadas, dos ingredientes minuciosamente escolhidos, do preparo cuidadoso de cada prato, da mágica alquimia de cada novo dia.

“Os Sabores do Palácio”

O filme nos propicia uma deliciosa viagem socio-histórico-gastronômica, por meio da qual se torna inevitável não só revisitar Carême e Escoffier nas cenas em que somos convidados a conhecer a cozinha geral do Palácio, mas também quando penetramos a cozinha particular do Presidente e nos surpreendemos com uma releitura do chefdos reis e do rei dos chefs. Nesse tímido espaço, o refinamento se alia a uma doce, sóbria e discreta elegância, que se manifesta na composição e na finalização dos pratos. Conduzidos pelo feminino, o método, a organização e a disciplina ressurgem adornados de cumplicidade, leveza, suavidade e encantamento. Na pequena cozinha particular da Presidência, experimenta-se, assim, um novo conceito de gastronomia fundamentado, a um só tempo, na simplicidade e na nobreza.

Referências

JAMES, Kenneth. Escoffier: o rei dos chefs. São Paulo: SENAC, 2008.

Os Sabores do Palácio. Direção: Christian Vincent. 2012. DVD (1h e 35min.)

“Os Sabores do Palácio”