Chef francês Michel Bras: ‘Não gosto do termo gastronomia
Entrevista 5 de novembro de 2014| 17h07| Por Jose Orenstein – PALADAR ESTADÃO
O jeito acanhado, a postura encolhida, a expressão sóbria por trás dos oclinhos arredondados não dão pinta de que se está diante de um gigante. E não vai exagero no adjetivo: o chef Michel Bras, 68 anos completos nesta terça, 5, é considerado pelos seus pares – de Ferran Adrià a Alex Atala – como um dos maiores da Gastronomia, uma influência incontornável.
Boa parte do prestígio do cozinheiro, que tem restaurante em Laguiole, no centro da França, advém do fato de ter antecipado em duas décadas, pelo menos, o que hoje é moda em celebradas cozinhas, da Escandinávia ao Japão: aproveitar o que está à volta, o ingrediente local, com ênfase em vegetais, ervas, flores e legumes que brotam na região.
Precursor. Bras antecipou o uso do ingrediente local, com ênfase em vegetais, ervas, flores. FOTO: Amanda Perobelli/Estadão
Foi esse princípio que o guiou na criação do gargouillou (diz-se garr-gu-iú) de jeunes legumes, prato símbolo de sua cozinha inventiva, sensível e atenta à natureza – um amontado delicado de dezenas de vegetais frescos ; ideia simples, replicada depois por diversos chefs.
De passagem pelo Brasil, Bras (pronuncia-se o “s”: brrás) comeu no D.O.M., na véspera de seu aniversário – e viu Atala servir-lhe um aligot, espécie de purê de batatas com queijo típico da região do Aubrac que o chef francês tornou mundialmente famoso.
“Gosto do encontro, de viajar pelo inesperado”, diz o chef, que se encabula ao saber seria fotografado. Ele prefere estar atrás da câmera, como a Canon semiprofissional que traz a tiracolo ao chegar para a entrevista, depois de uma tentativa de caminhada fotográfica por São Paulo.
O sr. veio ao Brasil como parte de um grupo de cozinheiros, o G-11, que são figuras públicas influentes. O sr. se sente à vontade nesse papel?
Bom, sou o mais velho (do grupo). Mas me sinto à vontade com essa nova geração porque eles falam de coisas que defendo e defendi ao longo da vida: o respeito ao produto e ao produtor, à natureza. Claro que pesam os sobrenomes. Mas estou nesse grupo não por isso. Estou nesse grupo porque acho que há reflexões de fundo que são muito apaixonantes e fascinantes e que são cruciais para nossas sociedades hoje em dia e para o nosso futuro, do que vamos comer.
Faz parte de suas preocupaçãoes temas como desenvolvimento sustentável?
Com certeza. Hoje é algo indissociável do trabalho do cozinheiro – é sua responsabildiade. Por exemplo: geralmente queremos do fornecedor um produto específico, adequado ao prato que imaginamos. E aí se nao vem o produto tal e qual você pediu, é descartado. Ora, acho que a força do cozinheiro é saber aproveitar, transcender e glorificar esse produto rejeitado. Usar tudo que o produtor oferece. (Sustentabilidade!)
Chefs de cozinha têm um papel político?
Acho que sim. Mas há varios caminhos. Para mim, o cozinheiro é antes de tudo um vendedor de felicidade. Ser cozinheiro não é uma profissão, é mais que isso, é uma linha de vida. Você deve respeitar o consumidor, o produtor e os seus colegas de cozinha. É mesmo uma linha de vida, que eu e minha esposa seguimos desde sempre. Há muitos temas que me sensibilizam como cozinheiro. Hoje, é a biodiversidade, ontem foi o sentido que damos ao encontro na cozinha.
E, também, levamos adiante a cultura do nosso país – como fazem, por exemplo, Gaston Acurio, pelo Peru, Alex Atala aqui, Ferran Adrià pela Espanha. Hoje a gastronomia ganha muita atenção da mídia.
Tem os que usam isso para o bem. E há os que são glorificados apenas pelo brilho fugaz que a mídia lhes proporciona.
Não há excesso de glamour em torno de chefs?
Na França, há uma série de programas de televisão que me incomodam um pouco. São melodramas, reality show: imagens que não têm nada a ver com a profissão de cozinheiro. Nosso trabalho não tem a ver com glamour, com jogar confete. É algo que se constrói com o tempo, é trabalho de uma vida. Minha assinatura foi lentamente construída, num percurso muito pessoal – com idas e vindas, um constante questionamento, muitas e muitas dúvidas.
No mundo, digamos que essa atenção midiática é algo bom, porque ajuda a veicular a cultura de vários países. Mas, enfim, há os que exageram um pouco…
E o que pensa de premiações de restaurantes, como a lista do 50 best?
Ah isso me enerva… (solta uma bufada à francesa). No plano pessoal, nosso percurso nunca foi orientado pela busca de estrelas Michelin etc. Para mim cozinha tem a ver com paixão. Os clientes, quando você se expressa de forma sincera e
honesta, percebem isso. Essa classificação do 50 Best, bom, a gente não entende os critérios, né? Geralmente ganha o mais extravagante… Mas, enfim, não sei, não me preocupo com isso. Por um momento fomos bem classificados, e depois fomos para o fim da lista. Mas como isso pôde acontecer se não mudamos em nada nossa maneira de ser e servir?
Mas o sr. tem três estrelas Michelin. Não teme perdê-las?
As mais belas estrelas são os clientes, que vêm e voltam.
Campo à mesa. O célebre gargouillou, criação de Bras que ainda hoje é imitada em restaurantes em todo o mundo. FOTO: Alexandre Lardeur/Divulgação
O sr. é autodidata. Mas quais foram suas influências?
Primeiro, meu território, o Aubrac, e minha mãe. Digo minha mãe, mas me refiro a todas as mães do mundo, à cozinha comum, feita com o que tem no dia no mercado pela mãe que extrai a quintessência do produto e serve algo bonito e bom à mesa para a família.
Sempre quis desmistificar a gastronomia. Na verdade, não gosto desse termo, que sempre foi um sinônimo de luxo à mesa – você não poderia comer bem se não tivesse produtos como caviar, lagosta. Não é nada disso: lembro da comida da infância, com os ingredientes mais simples e básicos que me alegravam imensamente.
Outra influência é Alain Chapel – sua cozinha, não o homem, porque ele não era muito acessível. Eu sou autodidata, filho de um ferreiro, e quando comecei a trabalhar, nos anos 1970, ser cozinheiro era reservado a uma espécie de casta. Passava de pai para filho. Imagine um filho de ferreiro… Mas, enfim, aprecio a cozinha de Chapel, porque dava muita atenção aos vegetais, respeito ao produto.
Depois, outra cozinha que me tocou, que me deu segurança num momento em que tinha muitas dúvidas sobre a profissão, foi a Fredy Girardet. É que, quando começamos, para existir na Franca era preciso atender à demanda tradicional: oferecer charcuterie, porco, batata, queijo. Não podia sair disso, senão te apontavam o dedo. Negamos esse esquema, e acabamos reconhecidos pelo guia Gault et Millau, o que trouxe gente de outras cidades para o nosso restaurante e nos permitiu sobreviver fazendo o que queríamos. A clientela local parou de vir e não
entendia o que fazíamos: cozinha com pouco molho, muito vegetal. Foi quando conheci Fredy, e pudemos conversar. Me emocionou o modo como ele levava sua vida ligada à cozinha. Ligado à familia, à mãe, à esposa, ao seu pais, ao esporte – que também pratico: corrida. Com ele aprendi que o cozinheiro é mais que um artesão, é um ser humano.
A criação na cozinha é sempre premeditada, racional?
Cozinhar é minha vida. Eu cozinho, eu vivo, eu cozinho, eu vivo. É algo fundido, para mim. Tenho dificuldade em dissociar. Se passeio, penso em cozinha. Faço fotos, penso em cozinha, em pratos. Quando corro é igual. Me guio apenas pela emoção que posso suscitar como cozinheiro.
E estar na vanguarda importa?
De forma alguma. Aconteceu de, quando começamos, minha esposa e eu, fazermos uma cozinha que era vanguardista. Nosso primeiro menu dedicado aos legumes é de 1983. Imagine, num país que só comia carne, era uma coisa de maluco servir só vegetais… Também no serviço, inovamos: não mudávamos os talheres, etc.
O sr. vem do interior da França, de uma pequena cidade, faz um cozinha local. Como é chegar no outro lado do mundo e ser reconhecido?
Isso me comove, verdadeiramente. Aqui no Brasil, depois de falar ao público tirei uma foto com uma pessoa e, quando vi, tinha uma fila de gente atrás. Isso me toca de verdade. Na vida acho que temos um papel, somos testumunhas de algo. E, na cozinha, cultivo alguns valores que, quando vejo espalhados pelo mundo, me emociono. Encontrei aqui em São Paulo pessoas que trabalharam comigo e vê-los me considerar como um pai me arrepia, de verdade (mostra os pelos eriçados do braço). Não tem como expressar isso. É o coração que fala.
E qual é o papel da cozinha francesa hoje?
Não penso nesses termos. Quero sair do esquema da cozinha francesa. Claro, ela tem pontos altos, mas num determinado momento ela se isolou num polo, como se só na França houvesse grandes produtos, ingredientes. Ontem mesmo descobri coisas no D.O.M. impressionantes – o que se pode fazer com a mandioca, o tucupi – adorei isso! E aquela fruta preta, açaí? Como é boa! Essas coisas são piores que foie gras? Não sei, não dá para dizer…
E fica incomodado em ver imitações de seus pratos pelo mundo?
Bom, de fato, tem gargouillou em toda parte. Ha uns anos o New York Times publicou uma pagina cheia de fotos de imitações nos EUA. Acho isso uma espécie de reconhecimento. Porque, no começo, meu trabalho com vegetais era incompreendido. E o coulant au chocolat (o que aqui ficou conhecido como petit gâteau) também, deu a volta ao mundo – todos se dizem criadores. Mas sei da emoção que foi quando consegui fazer vazar o chocolate – depois de errar muito.
E o sr. não espera crédito de quem o imita?
Não, não, de forma alguma. Prefiro a humildade. Minha referência é sempre o que deve ser a cozinha: um momento de partilha, se dar ao outro, porque trabalhamos com o gosto do outro.
Há mais de 20 anos o sr. criou coisas como o gargouillou, o menu vegetal, que agora tomam o mundo. Como será daqui a 20 anos?
Ah, não sei. Mas sei que houve derivação no munda comida. Chegamos a um ponto que me incomoda bastante: entramos no terreno das extravagâncias. A técnica suplantou a cozinha. Mas a técnica deve estar a serviço da cozinha. Para vender passou a ser preciso promover espetáculo. Esquecemos que a função primeira da cozinha é compartilhar, amar o outro. Agora começarmos a perceber que o caminho é voltar a uma cozinha que valorize o que é local.
E a maior ênfase no uso dos vegetais na cozinha significa que no futuro tendemos a não ter mais carne nos cardápios?
Bom, isso está no ar, é claro. Mas o dogmatismo não me agrada. Eu adoro uma boa carne. Eu não sou sectário: só vegetal, ou só carne, ou só peixe. Acho que é preciso ter inteligência, equilíbrio, há uma justa proporção para as coisas, é preciso saber respeitar isso, sem radicalismo. O extremismo não me atrai. Bom-senso, só isso.
E como é seu dia típico?
Tenho uma horta: acordo às 6 h e me dedico à colheita, com outros jardineiros. Levo o que colhemos ao restarurante, se precisam de minha ajuda para cortar e pré-preparar os legumes, eu vou, porque aquilo é meu paraíso, é um luxo para mim trabalhar com vegetais. Depois, ajudo meu filho com a parte administrativa, almoço e à tarde faço meu querido esporte, e então volto à horta – onde cultivo uma série de espécies, que recolho sempre nas viagens que faço. Tem coisas do México, do Vietna, do Japão…
E o que levará daqui?
Ainda não sei, ainda estou procurando alguma semente!