O TEMPO

Junho | 2018

Professora de Cozinha Mineira Rosilene Campolina é a única “chef mulher”na chapa do fígado com jiló pro Guinness Book

Verdade seja dita, o tradicional fígado com jiló não tinha a menor pretensão de se sagrar uma celebridade. Pode-se dizer até que a iguaria surgiu meio que ao acaso, quando juntou-se a fome com a vontade de comer, como diz o provérbio. Até então improvável, a combinação foi ganhando forma, fama e, com o tempo, seduziu até os mais desconfiados. Afinal, nascido no Mercado Central, onde a oferta de comes é farta e diversa, o prato precisou romper com a desconfiança dos mineiros para então cair no gosto de todo mundo. 

Hoje, é verdade, o acepipe fez nome Brasil afora. “Os paulistas já falam sobre o Mercado Central e seus petiscos com mais propriedade que eu”, examina com bom humor o escritor Humberto Werneck, nascido em BH, mas que faz de São Paulo sua casa desde 1970. O sucesso, aliás, ultrapassa nacionalidades: “Até gringos com suas línguas enroladas já aprenderam a pedir”, brinca carinhosamente o chapista Ronaldo Marques da Silva, o Ronaldão, que há 20 anos prepara o prato no bar Fortaleza.

Famoso em vários sotaques e idiomas, o fígado com jiló, que também atende por fígado acebolado, agora vai ganhar registro no livro dos recordes. Ocorre que, neste domingo (27), das 10h às 15h, uma chapa de 16 m será montada na avenida Augusto de Lima, em frente ao Mercado Central, e lá chefs – como Flávio Trombino, do restaurante Xapuri, Marcos Proença, do Patorroco, e Rosilene Campolina, professora de gastronomia da UNA – e chapistas – entre eles o Ronaldão e Wellington Paulo Nunes, do Bar da Lora – vão preparar mais de 400 kg do petisco.

“Cada um desses 12 profissionais terá 1,2 m para preparar o fígado com jiló a seu modo”, detalha o superintendente do Mercado Central, Luiz Carlos Braga. Com o feito, o Mercado Central de BH passará a figurar no “Guinness World Records” pela marca de ter preparado a maior chapa de fígado com jiló do planeta. “Já somos patrimônio imaterial por esse prato e pelo abacaxi no palito e, agora, entramos de vez no livro dos recordes”, comemora.

Para celebrar tal marco, o evento deve reunir cerca de 2,5 mil pessoas, que podem garantir entrada a partir da doação de 5 litros de leite, que dão direito a uma porção da celebrada iguaria. Chamado de “Festival Cultural do Mercado Central”, estão programados shows de chorinho do grupo Choro Nosso, e de percussão do Batuque Salubre, formado por alunos da Escola de Artes do Instituto no Aglomerado Morro das Pedras. Para finalizar, há uma apresentação do Magnatas do Samba. Braga acredita que a mistura faz todo sentido, afinal, “em Minas a cozinha, definitivamente, faz parte do que entendemos por cultura”.

Tradição

Vale dizer, o prato é bem mais que um saboroso petisco convencional e sua tradição é cercada de rituais próprios. Tanto é que faz bem informar aos desavisados: o autêntico fígado com jiló se come de pé, perto do balcão, de preferência acompanhado de cervejas geladas. A boa prosa, diga-se, harmoniza bem. Na verdade, vale até um samba, como o que cantava a aposentada Vera Lúcia de Barros acompanhada no gogó por dois “novos amigos”, mesmo que ela não soubesse o nome deles.

Aos 75 anos, ela se gaba de ser uma dessas pessoas que não se perdem ao circular pelo Mercado Central. Conhece por nome boa parte dos atendentes e donos das quase 400 lojas do espaço. 

Na última quarta (23), lá estava ela, com sacolas de compras postas em um carrinho de supermercado, com sorriso no rosto e uma cerveja na mão. Petiscando o famoso fígado com jiló, ela garante que a cena se repete com frequência. “É de praxe, uma tradição… Eu sempre saio do (bairro) Santa Amélia e venho aqui, onde eu compro tudo e, no fim, sempre termino em um bar”, diz ela, que vê na compra de suprimentos oportunidade de diversão. 

É lá, defronte ao balcão, que Vera encontra velhos conhecidos, como um amigo de bairro com quem relembrava conhecidos comuns. “Mas sempre que venho, além dos antigos, faço novos amigos”, festeja ela. “Aquele rapaz e o tio dele eu conheci agora”, comenta sobre a dupla com quem cantava a música “Preciso me Encontrar”, de Cartola (1908 – 1980).

Vera, é verdade, nasceu praticamente no Mercado Central, afinal já desfilava por aqueles corredores desde que estava “na barriga de mamãe”. O caso parece extraordinário, mas é mais comum do que se pensa. A poucos metros da aposentada, Marcelo Michel e Carla Miguel se deliciavam em porções da iguaria. Junto deles, duas meninas e um menino, filhos do casal. 

“Frequentamos aqui desde antes deles nascerem, há oito anos”, lembra o Michel, que, pelo menos uma vez por semana, sai de Betim para visitar o Mercado Central com esposa e filhos. O fígado com jiló, aliás, é quase o prato preferido da família, não fosse o filho mais novo que ainda não tomou gosto pelo acepipe.

Entre as mais de 31 mil pessoas que passam por ali todos os dias, chegando a 58 mil aos sábados, Flávio Luíz Trombino, do restaurante Xapuri, é outro que frequenta desde a mais tenra idade. “Venho aqui desde que me entendo por gente”, diz, citando que no início vinha acompanhando o pai. Hoje, faz parte de seu cotidiano “visitar e recomendar este templo da gastronomia”. Para ele, aliás, “essa diversidade de produtos, de todos os cantos de Minas e até de outros Estados contribuiu para essa minha vocação”.

Conhecedor do lugar há tanto tempo, se for para Trombino indicar o prato que é a cara do Mercado Central, ele não titubeia: “É o fígado com jiló”. Tanto que, quando realizou o evento “Minas de Cabo a Rabo”, onde fazia releituras de pratos tradicionais das várias regiões mineiras, foi esta a iguaria escolhida para homenagear não só o Mercado, mas também toda região Central do Estado.

De prato improvisado a iguaria tradicional

Origem Se de filho bonito todo mundo quer ser pai, não faltam versões sobre como surgiu o fígado com jiló do Mercado Central. Certo é que todas guardam semelhanças.

1960 Um dos pontos comuns é que o petisco foi criado na década de 60, entre os trabalhadores – fossem tropeiros, carregadores ou açougueiros, a depender de quem conta o causo –, que, famintos, buscavam um prato que pudesse ser preparado rapidamente. 

Combinações No princípio, a combinação era de “miúdos de porco e jiló”, mas não demorou para que descobrissem que a receita ideal era com o fígado. A cebola foi logo agregada e pronto: o prato nunca mais mudou – ganhando, no máximo, pimenta biquinho ou tempero à base de alho em alguns dos bares.

1980 A popularidade veio quase 20 anos depois da invenção, quando finalmente virou a principal iguaria de lá.

Ascensão Quem tem um bom palpite sobre as circunstâncias da popularização do prato é a aposentada Vera Lúcia de Barros. Conhecendo o lugar desde que as lojas eram tendas e o chão era de terra, ela lembra que entre 1969 e 1973 o espaço passou por uma reforma, tomando então a forma que hoje tem. Enquanto durou a obra, o Mercado continuou funcionando. Assim, sendo preparada para os trabalhadores, a iguaria foi seduzindo mais e mais pessoas.

Entre petiscos e boa prosa

Pode soar exagero, mas o fígado com jiló do Mercado Central agrada, quase que magicamente, gregos e troianos. O rapper Flávio Renegado, por exemplo, vê o prato como opção sempre bem-vinda nos fins de tarde. Melhor ainda se for acompanhado de uma “cervejinha gelada”. Mas, confessa, “o jiló só me ganhou há pouquíssimo tempo, faz uns dois anos”. “Eu não era muito adepto, mas, depois desse prato, até o jiló ganhou meu paladar”, comenta ele.

Outro que não é lá muito afeito ao legume é o autônomo João Lucas Bizzotto. O belo-horizontino, no entanto, não recusou o convite da namorada, a paulista Ana Carol Francisco, que vive em BH desde 2014, para um almoço diferente no Mercado Central. Pudera: o ambiente é, para eles, mágico. “Tem esse lado boêmio, essa coisa da tradição”, destaca a moça, que trabalha com rastreamento veicular na região e, portanto, sempre aproveita oportunidades de passar por lá. 

Atentos à mistura entre pessoas de todas as idades e estilos, o casal indica algo que Fernando Brant (1946 – 2015) fez questão de frisar no livro “Mercado Central” (Ed. Conceito, 2004): o caráter absolutamente democrático daquele quadrilátero. Por tudo isso, Bizzotto até aceitou experimentar o jiló, superou um pouco a resistência, mas sem uma cerveja de acompanhamento, ainda preferiu evitar, fisgando apenas pedaços de fígado e cebola. Reconhecendo a tradição do prato, Ana Carol, por sua vez, lembra que quando recebe amigos de outras cidades, nem precisa mencionar o passeio: os visitantes logo dizem querer experimentar a iguaria. “Ali você está no coração da cidade, da culinária local, da diversidade cultural de BH”, elogia ela.

Destino certo para esbarrar – literalmente – com velhos conhecidos e fazer novas amizades, Ana Carol diz que o lugar está sempre no seu radar. Ela segue religiosamente a tradição: come de pé e disputa, amistosamente, um lugar perto do balcão. Nos 14 bares do Mercado Central, afinal, existem até dias menos movimentados, mas os estabelecimentos nunca ficam vazios.

Entre os fregueses de carteirinha do lugar estão os chefs da cidade. É ali que eles vão para atualizarem seus pratos passeando entre as perfumadas frutas da estação e as várias especiarias. Marco Proença, do Patorroco, é um desses que não abrem mão de passar por lá. Em comum com as chapas de fígado com jiló, a cozinha dele também começa pelo olfato. “As pessoas dizem que comer começa com os olhos. No meu caso e aqui, é com o nariz”, diz ele.

Assim como os outros frequentadores, Proença celebra a harmonia com que todos podem interagir. Ele lembra, ainda, que o lugar funciona como uma válvula de escape. “Quando estou estressado, venho almoçar aqui. Degusto um queijo aqui, uma cachaça acolá, quando não termino no fígado acebolado”, lembra ele. 

Há 20 anos à frente de uma chapa, Ronaldo Marques da Silva, o Ronaldão, sabe que precisa estar atento não só ao paladar, mas também ao humor da freguesia. Quando aparecem aqueles que, como Proença, veem nos bares do Mercado um lugar de relaxamento, lá está o chapista e suas histórias. “Eu conto para esse povo que já fiz sete porções de uma vez na chapa, ficam de queixo caído”, diz ele, entre risadas, para logo emendar: “Mas isso é lero lero… Tem que ter um pouco de história para esse povo vir ver a gente”. 

Orgulhoso de seu ofício, Ronaldão conta que se é a primeira vez do cliente e ele diz não gostar de jiló, “coloco um pouquinho no canto do prato para a pessoa experimentar. Como vai saber que não gosta se não comeu da minha chapa?”, questiona. Se foi ele quem converteu Renegado a gostar do legume, não recorda – mas é bem possível, garante. Hoje, quando pensa em se aposentar, Ronaldão logo lembra que o substituto, além de ser bom de chapa, “tem que ser bom de papo”. Fígado com jiló, afinal, é prato para ser “compartilhado e conversado”.

No balcão são todos iguais

Explicar o sucesso arrebatador do fígado com jiló não é tarefa fácil – mas as palavras do escritor Alceu Amoroso Lima (1893 – 1983) talvez ajudem a entender essa mágica. Com obra que chegou a ser indicada ao Nobel de Literatura de 1965, o autor carioca já preconizava os rituais que hoje são tão comuns entre os frequentadores do Mercado Central: “O mineiro come pouco e come da comida mais simples possível. (…) A mesa é sempre acessório com sua vocação irresistível para a predominância do espírito”, escreveu ele no longínquo 1945.

É justamente na simplicidade do prato associada ao clima de confraternização que sempre o acompanha que a professora de gastronomia brasileira e regional da UNA, a chef Rosilene de Lima Campolina, justifica o sucesso da iguaria. “Fora o guisado de cebola, que vem emprestado dos portugueses, o prato é totalmente mineiro. Quase rudimentar e servido assim, sem pretensão, esse é o segredo do nosso fígado com jiló”.

Mineiríssimo, o prato conquistou fãs como Wellington Paulo Nunes, que de apreciador do petisco passou a ser chapista. Com 25 anos trabalhando nas proximidades do Mercado Central, há oito está à frente da chapa do bar da Lora, que chega a vender 50 porções durante os dias de semana, ao preço de R$ 28,90. O número de pedidos pode dobrar aos sábados e domingos. Nesse tempo, “já atendi muito famoso, jogador de futebol, artista da TV”, gaba-se, lembrando, por exemplo, de César Menotti e Rogério Flausino. Frequentadora do Mercado, Vera Lúcia de Barros, 75, comenta que já dividiu balcão com muitos figurões, entre eles lembra da cantora carioca Leci Brandão e dos cartolas Zezé Perrella e Alexandre Kalil, hoje prefeito de BH.

Entre os ilustres fãs da iguaria estão também nomes ligados à literatura, como o escritor Wander Piroli (1931 – 2006). “Ele foi um frequentador assíduo do Mercado Central, pelo menos, nos anos de 1970 e 1980”, situa o também escritor Fabrício Marques. Já o biógrafo Humberto Werneck recorda que por ali havia um grupo de magistrados que se rotineiramente se encontravam. “É uma combinação engraçada, jiló e magistratura”, comenta, fazendo referência à turma do “Anexo”, registrada no livro “Mercado Central” (2004), de Fernando Brant (1946 – 2015). 

Fenômeno único, vale dizer, famosos e comuns se misturam nesse templo da cultura de Minas, como eternizou Brant: “A igualdade sonhada por revolucionários franceses e conjurados mineiros, se em algum lugar existe, é ali que se manifesta comprovadamente. Não queira você arrotar poderes onde só cabem gases outros”.

A cara do Mercado e de BH

No páreo, estavam lugares como o Conjunto Arquitetônico da Pampulha, a Praça da Liberdade, o bairro Santa Tereza e o Mineirão. Mas não deu outra: o Mercado Central saiu na frente e foi eleito, em dezembro do ano passado, o lugar que é a “Cara de Belo Horizonte”. 

Agora, se for para saber o que melhor representa este que é um dos principais pontos turísticos da cidade, nem precisa muito perguntar: é o fígado com jiló, ali criado e popularizado. Tanto é assim que quando o chef Marcos Proença, do restaurante Patorroco, participava de um festival no Rio de Janeiro e elaborou por lá um prato de fígado com maxixe, logo vieram perguntar se aquela era a famosa iguaria do Mercado de BH.

Habituado a explorar a gastronomia dos bares da cidade, Daniel Neto, o Nenel, do blog “Baixa Gastronomia”, até se esforça, mas não consegue lembrar de outro lugar onde encontre fígado com jiló na chapa. “Quando penso no prato, vou lá, até porque se for a outro lugar, corro o risco de me decepcionar”, diz.

Histórias que só provam que a memória afetiva é também geográfica. O paladar, afinal, “tem a capacidade de remontar à lembrança numa verdadeira viagem ao passado, próximo ou distante, ainda que efêmero”, descreveu Marcos Mergarejo Netto, doutor em Geografia pela Unesp, em artigo sobre o Mercado Central.

E se a iguaria foi alçada a tradição e marca registrada do lugar, o chapista Ronaldo Marques da Silva, o Ronaldão, é parte importante deste folclore. Com propriedade de quem há duas décadas comanda a chapa do bar Fortaleza, ele crava: “Quem passa pelo Mercado Central e não come fígado com jiló é como se nem tivesse vindo ao Mercado”.

Levando a tradição para casa

Versões Há várias formas de preparar o famoso fígado com jiló. “Tem uns que fazem com cebola mais grossa, alguns cortam tudo na faca, outros com processador…”, comenta o chapista Roberto Marques (ao lado). Ele prefere o ingrediente mais fino. Outro segredo é usar a chapa muito quente.

Receita A professora de gastronomia Rosilene Campolina, do blog “De Chef para Chef”, ensina a preparar o prato que une “simplicidade e tradição”.

Preparo O primeiro passo é retirar a membrana e temperar 1 kg de fígado com pasta de sal e alho. Depois, oito jilós graúdos devem ser cortados em fatias finas. Com a casca, os pedaços devem ser demolhados em água, sal e um pouco de vinagre por 15 minutos.

No fogo Em uma chapa ou frigideira grossa e bem quente, regue um fio de óleo e frite o fígado até deixar ao ponto. O jiló escorrido entra em seguida, ficando mais 5 minutos no fogo. Finalmente, quatro cebolas médias picadas em rodelas e cinco dentes de alhos bem picadinhos são acrescentados aos outros ingredientes e só saem da chapa quando murcharem suavemente.

Toque final Se desejar, pingue gotas de limão ou vinho de jabuticaba por cima do prato e polvilhe flor de sal defumada com sal a gosto. E bom apetite!

Fonte:
https://www.otempo.com.br/pampulha/tradi%C3%A7%C3%A3o-culin%C3%A1ria-1.1836422