Aula virtual de Cozinha Brasileira – Nordeste com Rosilene Campolina e Eduardo Batista
Foi preciso despir um santo para vestir o Santo
Autoria: Eduardo Roberto Batista, Eliane Bragança de Matos, Nathália de Fátima Joaquim
Agradecimentos ao CNPq pelo auxílio financeiro para realização da pesquisa que originou este trabalho.
RESUMO
Esta é uma história feita de várias outras histórias. Conta como um bolinho mágico, saído da
África junto com os escravos, chega à Bahia como comida de santo e aporta nas Minas
Gerais, já sem magia, mas ainda encantado de força e fé, que transformam ralés ordinárias em
empreendedores. Perder magia, na história do acarajé, é ganhar santidade. Anular a magia da
comida de santo dos terreiros e ruas do Candomblé torna-se condição para o renascimento do
acarajé como empreendimento, e sua aceitação pela comunidade evangélica. A “limpeza” da
comida de santo, tipicamente baiana, própria dos escravos e do Candomblé culmina na
ressignificação cultural do preparo e comercialização do bolinho, mercadologicamente
adequado e apropriado ao gosto do mineiro. A contribuição deste trabalho é construir um
olhar para o processo de se tornar empreendedor, o processo de gestão e como a gestão
acontece naquilo que é ordinário, comum, cotidiano. Ao analisar histórias e narrativas, que
envolvem e circundam o acarajé, temos a possibilidade de conhecer e compreender os
processos tanto de apropriação, quanto de significação e ressignificação. E são esses
processos que constroem a gestão. A gestão não é algo engessado e pronto, um one best way,
mas sim um contínuo congelamento, descongelamento e recongelamento. A gestão é também
histórica e processual. Um contínuo de construção e reconstrução.
Palavras-chave: Empreendedorismo, gestão, ralé, acarajé
- Era uma vez um bolinho mágico…
Essa história começou na África, passa pela Bahia e desemboca nas Minas. São histórias de
apropriação, [res]significação e de construção social empreendedora. O acarajé,
aparentemente o personagem principal dessa história, ao “[re]incorporar” nas Minas, é
despido de sua santidade e [re]construído material, simbólica e economicamente. São as
histórias do “acarajé mineiro”, por meio das narrativas construídas por suas “baianas” e seus
tabuleiros que vamos contar. Porém, é importante ressaltar que como afirma Roque Laraia,
“pode parecer que estamos dando importância maior ao acarajé do que ao ofício das baianas
do acarajé, mas este fato tem um sentido: neste complexo cultural, o acarajé é o elemento
central” (apud CANTARINO, 2005, p.119), uma vez que é através da viagem do acarajé da
África até a feira Hippie de Belo Horizonte, que contamos as histórias de empreendedores.
Originário da África Ocidental, esse bolinho que compõe o cardápio de Iansã, era
inicialmente conhecido como acará para ajeum, servido puro ou, no máximo, com
pimenta. Um mito africano narra que depois de se separar de Ogum e se casar com
Xangô, Iansã foi enviada pelo novo esposo à terra dos baribas para buscar um
preparado que, uma vez ingerido, lhe daria o poder de cuspir fogo. Ousada, Iansã
desobedeceu Xangô e experimentou o preparado antes dele, também se tornando
capaz de lançar chamas de fogo pela boca. É graças a isso que nos rituais dos deuses
do fogo, Xangô e Iansã disputam para engolir os acarás – mechas de algodão
embebidas em dendê e acesas com fogo, numa cerimônia que lembra a origem do
acarajé (SANTOS, 2012, p. 3).
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Muito popular na Bahia, essa iguaria é feita de feijão fradinho triturado e frito em azeite de
dendê, oferecido, nos terreiros do Candomblé, à deusa Iansã (NADALINI, 2009; SANTOS,
2012).
Figuras 1 e 2 – Fotografias tiradas em abril de 2015 em duas barracas de acarajé da Feira Hippie de Belo
Horizonte.
Fischler (2001) afirma que, o homem se alimenta de imaginário e de significados, repartindo
representações coletivas. Sendo assim, os alimentos envolvem não só o seu valor nutritivo,
como também, um valor simbólico, cultural e social. O acarajé, neste sentido, está
incorporado não só de sentido alimentar nutritivo, mas também de sentido simbólico, de
comida de santo.
Comida de Santo ou Oferenda são rituais específicos de cada Orixá, que para serem
preparados são submetidas a verdadeiro ritual, tem que ser preparado com
orientação de Pai ou Mãe de Santo, pois não é simplesmente fazer, orixás tem
quizilasi
, pela qual alguns não levam dendê em sua comida assim como Oxalá. (…)
Antes de qualquer coisa, para fazermos a Comida de Santo, não podemos estar
impuros; depois de ter relações, ter ingerido bebida alcoólica, irmos a hospitais,
mares, cemitérios (…) Tem todo um rito antes da preparação, estar todos de
branquinho, cabeça tapada; temos que ter um carinho especial para com o nosso
Orixá, não pode se fazer de qualquer jeito. (SILVA, em
http://tatianedoxalufan.blogspot.com.br/2012/08/comida-de-santo-ou-oferenda.html.
Acesso em 02 maio 2015)
A história do acarajé não pode ser dissociada da religiosidade típica do Candomblé, “forjado
em terras brasileiras, (…) numa significativa condensação das forças metafísicas que levou
mais de um século para se definir, no processo de integração das diferentes nações cujos
representantes chegaram ao Brasil durante o período da escravidão” (CABUS, em:
http://www.mortesubita.org/cultos-afros/textos-afro-religiosos/candomble-origem-e-liturgia.
Acesso em 02 maio 2015). O Candomblé, enquanto religiosidade formada no Brasil
escravocrata, reflete também a incorporação dos hábitos alimentares da população escrava às
comidas de santo e vice-versa, como pontua Cascudo (2004).
Ao iniciarmos esta história do acarajé achamos importante também demarcar a sua origem
não só sob o aspecto da sua constituição como alimento, mas também da sua constituição
como produto comercializável. A origem da comercialização do acarajé remonta ainda aos
tempos de África quando “(…) as mulheres já praticavam um comércio ambulante de produtos
comestíveis, o que lhes conferia autonomia em relação aos homens e muitas vezes o papel de
provedoras de suas famílias” (CANTARINO, 2005, p.121). Aportando no Brasil, a
comercialização do acarajé, preserva sua característica de provento familiar, mas incorpora,
3
por outro lado, o elo fundamental na sustentação das irmandades religiosas e do candomblé.
As escravas de ganho que trabalhavam nas ruas para as suas senhoras (geralmente pequenas
proprietárias empobrecidas) com maior liberdade de circulação, exerciam o comércio do
acarajé também em cumprimento às suas obrigações religiosas, filhas de santo que eram.
Aqui é importante fazer uma pausa para reforçar que a jornada inicial do acarajé demarca
algumas características básicas: é uma comida de e para santo, tanto no que diz respeito a sua
origem histórica, quanto na sua participação nos rituais religiosos próprios do Candomblé;
própria do fazer feminino, tanto do ponto de vista ritualístico, representado pela figura da
Iábassé (a responsável pela cozinha e elemento central no preparo da comida de santo, que
cuida desde a compra dos ingredientes até a finalização dos pratos que serão oferecidos aos
orixás) (AGUIAR, 2014), quanto da apropriação do bolinho como produto comercial, vendido
pelas escravas nas ruas, canal de sustento para suas famílias marginalizadas.
Historicamente, a produção e comercialização do acarajé foram iniciadas no período da
escravidão e com o passar dos anos, essas práticas foram disseminadas em todo o país e,
atualmente, é fácil encontrar famílias inteiras sobrevivendo dos tabuleiros das baianas
(CANTARINO, 2005). A sua transposição para Minas aconteceu…
Lá na Praça da Liberdade
lá em cima
a primeira barraca de acarajé
parece que foi de uma senhora. (Iemanjá)
Dona Inácia – histórias de família
Vinda lá das bandas da Bahia, Dona Inácia chegou nas Minas com uma filha e dois sobrinhos.
Deixou alguns filhos para trás que vieram para Belo Horizonte anos mais tarde. Sem eira nem
beira, o que esses baianos podiam fazer nessa “terra nova”? Na bagagem, apenas o tal bolinho
mágico e a rua, que era um espaço sem dono. Sem dono do espaço público e sem poder
público que delimitasse e controlasse sua ocupação.
A Inácia foi tia do meu esposo
É tia dele
foi ela que começou [a vender acarajé] aqui em Minas Gerais
Só ela começou a trabalhar aqui
e ela começou a trabalhar aqui na
no Cine Floresta
É
[depois] nós fomos para a Praça da Liberdade
ali na frente do Palácio [da Liberdade]
e ali começou a gente trabalhar (Obá)
Segundo Carrieri, Saraiva e Pimentel (2008), surgiu, em 1969, em Belo Horizonte, na Praça
da Liberdade, a Feira de Arte e Artesanato de Belo Horizonte, mais conhecida como Feira
Hippie. A concepção e a instauração da Feira de Arte e Artesanato teria ocorrido a partir da
relação entre artistas plásticos, artesãos, críticos de arte e alguns elementos hippies.
Isso se foi nos anos 70
começou mesmo trabalhando na tora
montando sem documentação
sem nada
então com o decorrer do tempo veio
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veio a ceder a licença
para que todos estivessem trabalhando legal (Obá)
Porque eu mudei
da Bahia para Minas
e aqui
eu comecei a trabalhar
com uma tia minha
Surgiram seis vagas
na Feira Hippie
e eu consegui uma vaga
e comecei a mexer [com o acarajé]. (Nanã)
Nota-se, por meio das falas das “baianas do acarajé”, que além dos elementos hippies, de arte
e artesanato, logo no início da feira, já estavam presentes também os elementos culinários e o
acarajé era um de seus representantes, ainda que de maneira anônima, “na tora” e “sem
documentação”. Porém, o bolinho mágico foi ocupando seu espaço e novas barracas foram
surgindo. A “tia” trouxe o acarajé e a família seguiu o cheiro do dendê.
Tal fato demarca que a feira foi se tornando um lugar mais democrático e, de acordo com
Carrieri, Saraiva e Pimentel (2008), com o passar do tempo a feira começa a perder suas
características originais. Ocorre um crescimento desordenado e uma perda de qualidade dos
artigos vendidos, o que, aliados, principalmente, ao processo de depredação da Praça da
Liberdade, justificaram a sua transferência para outro local. Porém, esse processo de mudança
de local de realização da Feira Hippie também modificou sua identidade. Para Carrieri, Souza
e Lengler (2011, p. 435), o fato da Feira acontecer na Praça da Liberdade, “criava um
ambiente intimista, no qual a produção artística poderia acontecer e era valorizada”. Com a
transferência para a Avenida Afonso Pena acontece a institucionalização da feira, mas, por
outro lado, ela “perde sua importância artística e cultural”.
Esta transferência tinha também uma forte motivação política, uma vez que com a
transferência seria possível reestabelecer o controle da prefeitura sobre a Feira, através de
novas seleções, reavaliações de credenciais e, consequentemente, a negociação de votos e
apoios políticos. Então, 1991, a Feira Hippie, deixou a Praça da Liberdade e foi transferida
para a Avenida Afonso Pena, onde foi rebatizada de Feira de Arte, Artesanato e Produtores de
Variedades (CARRIERI, SARAIVA e PIMENTEL, 2008).
não era isso aqui [barraca da Feira Hippie]
era um tabuleirinho na época
aí a gente saía
quando o fiscal vinha
[a gente] pegava assim ó
e saía correndo (Obá)
Seguindo a jornada do acarajé, quando aporta nas Minas, na bagagem de Dona Inácia e sua
trupe, “nosso herói” perde suas características mágicas de santo e se transforma em um
“ordinário e informal” ganha pão. E a filha de santo, conjuntamente, se transforma em
trabalhador informal. A informalidade própria do indivíduo ordinário, ou seja, indivíduo
comum que utiliza da informalidade como forma de sobreviver, especialmente, como forma
de se inserir no mercado de trabalho (SOUZA, 2009). Como próprio dos movimentos de
transformação econômico-sociais sem rupturas drásticas, o traço de ralé da produção e
comercialização do acarajé, entretanto, permanece. Assim como as escravas filhas de santo
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andavam à margem da sociedade, os trabalhadores informais do acarajé quando apresentam o
acarajé aos mineiros, se mantêm invisíveis e institucionalmente excluídos, ralé que são
(OLIVEIRA et al. 2013).
Mas, o bolinho de santo, adormecido em suas propriedades mágicas que conferiam poder de
cuspir fogo para a guerreira Iansã, discreta e silenciosamente dota a trupe de Dona Inácia de
coragem e força para vencer as adversidades. Garantir o sustento familiar por meio da venda
do acarajé, até a regulamentação de sua venda na Feira Hippie, foi tarefa árdua.
A gente saía correndo do fiscal
pega aí né
em tempo de queimar alguém ou de machucar alguém
e aí nós estamos aqui
todo mundo
Para muita gente
que está aqui
foi muito fácil
para ele entrar
não foi igual nós começamos
antes
há 20 anos
30 anos atrás
então ela chegou lá na prefeitura
tirou licença né
Ela sofreu muito para a gente estar aqui hoje
que hoje nós achamos pronto por causa dela (Obá).
Muitas transformações ocorreram durante o processo de [re]configuração do espaço do
acarajé na feira. A iguaria que inicialmente era vendida em um tabuleirinho, passa a ser
comercializada em uma barraca e esse novo espaço agrega novas possibilidades de preparo do
acarajé. Na barraca cabe toda a família. O tabuleiro cresce, porque agrega mais produtos e a
família também cresce. Expande-se o número de barracas, 16 atualmente, o acarajé cai no
gosto do mineiro.
A história do acarajé nos mostra, também, o processo de construção de um negócio, de um
empreendimento. Ainda circulando a característica familiar do negócio, sua constituição
demarca a passagem de uma atividade informal, de complementação ou formação de renda
familiar, para um negócio formal gerador de receitas, base de sustentação e crescimento da
família.
Meu filho
[o acarajé] representa tudo
Tudo o que eu tenho
foi o acarajé que me deu
Sempre com o acarajé
desde que vim pra Minas
há trinta e cinco anos
que eu estou vivendo só de acarajé
Estudei todo mundo
todo mundo se formou
todo mundo trabalha
trabalha fora
trabalha comigo
tudo com o acarajé.
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[…]
O acarajé
é minha única fonte de sobrevivência
criei cinco filhos
só com isso (Nanã).
Ah
para mim
o acarajé
é tudo
que foi com ele
que eu criei minha família
né
Criei minha família toda
com o acarajé
Porque
em outro emprego
eu não aprendi a fazer nada
só aprendi a fazer acarajé mesmo (Iansã).
Se por um lado o acarajé se constrói como empreendimento a partir de sua efetividade como
modo de produção e comercialização formalizados através do atendimento às regras
instituídas pela Prefeitura de Belo Horizonte para participação na Feira Hippie, por outro lado
a sua constituição encontra respaldo na aceitação e formação de um mercado consumidor.
Eu tenho muito freguês
eu tenho freguês aqui que
vem com os pais comer
cresceram
casaram
e eles continuam comendo
neto comendo né
é desse jeito (Iansã).
tem cliente
com mais de 40 anos
que frequenta a barraca
[esses clientes começaram a frequentar] antes de eu [começar a] trabalhar (Iansã).
Hoje
já está mais que uma tradição para ele [acarajé]
né
Nós temos clientes aqui de vinte anos [que frequenta a barraca]
agora mesmo
saiu aqui um de dezoito anos
que frequenta aqui
todo domingo saem de Vespasiano pra cá
pra comer acarajé todo domingo
Ah
tem amigos
Já frequentam minha casa
eu frequento a casa deles
É
é uma grande família hoje (Oxalá).
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Continuando a história – da transformação da “santidade” em empreendimento
Esta história conta uma história de família, de uma grande família. De uma família que da
origem santificada torna-se uma família de empreendedores de acarajé. Se inicialmente o
“negócio do acarajé”, em sua tradição simbólica e histórica se constituía em torno da
centralidade da família de santo, isto é, somente as “autorizadas”, as filhas de santo, podiam
produzir e vender o acarajé, hoje o acarajé da Feira Hippie se organiza em torno da origem
familiar da Dona Inácia. Todos os barraqueiros deste segmento na feira são descendentes
diretos ou agregados desta pioneira do acarajé.
A Inácia
é mãe do meu tio
Foi Dona Inácia que trouxe pra cá
Então
acaba que todo mundo é uma grande família
né
A Dona Inácia é na verdade
ela é mãe do meu tio
que é casado com a minha tia
Eu não sou parente da Dona Inácia
Não
eu sou parente da esposa do meu tio
que é irmão do meu pai
mas foi ela que trouxe pra cá
Porque foi ela que trouxe [o acarajé]
ela trouxe
e a maioria [da família] veio da Bahia para Minas
O desfazer e distanciamento simbólico da “santidade” atribuída e constituinte do acarajé e sua
consequente constituição como empreendimento necessita, nesta construção, de preservação
da sua origem, legitimando assim suas peculariedades. Traduzindo esta história em outras
palavras, o que se vê, é que o empreendimento acarajé precisa, neste momento de constituição
do negócio, de resgatar e reafirmar sua autenticidade e diferenciação em relação a outros
negócios alimentares de rua. Este processo de legitimação e diferenciação passa pela
afirmação de proximidade com sua origem baiana. A baianidade é declarada através de uma
originalidade de descendência direta, indireta, através do pertencimento original ao “território
baiano” ou de afiliação cultural, como são as cidades do norte de Minas reconhecidas por sua
baianidade cultural.
Eu sou lá de Jequitinhonha
é o Norte de Minas
você já viu
é um lugar baianizado (Iemanjá).
Porque
assim
eu não sou baiana
mas minha mãe
e as minhas avós
eram (Oyá).
Alguns banners usados nas barracas reforçam a legitimidade e diferenciação do acarajé,
comida da Bahia. “O verdadeiro acarajé” ou mesmo alusões simbólicas de referência
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territorial, como os fundos de foto da Baía de Todos os Santos e o Elevador Lacerda, pontos
turísticos demarcados de Salvador discursivamente reforçam a origem destes
empreendimentos.
Figuras 3 e 4 – Banner de uma das barracas da Feira Hippie e um cartão de visita.
Ao [re]contarmos esta história nos deparamos com um momento de “revelação”. Aquele
momento em que ao ouvirmos as histórias nos deparamos com a compreensão do que as
“entrelinhas” ou as convergências das narrativas querem dizer. Aquele momento em que,
intimamente nos dizemos “agora entendi!”. Ou mesmo, “matei a charada!” Este momento
demarca o momento da constituição do Negócio Acarajé da Feira Hippie. Ou do negócio do
acarajé mineiro. Se formalmente este negócio se constitui através da “legalização” do
participante de acordo com as regras públicas de participação na feira, simbolicamente se
constrói na apropriação do acarajé como “acarajé mineiro”. Diferentemente da receita original
e tipicamente baiana, o “acarajé mineiro” é transformado e adaptado ao gosto do mineiro na
forma como é produzido.
É o tempero né, por exemplo, o [acarajé] baiano é frito 100% no azeite de dendê né. Aí a gente tinha descoberto
né, por nós próprios né, que você vai, você pede no mínimo dois, três dias, porque o dendê fica muito denso e a
gente acaba pegando uma diarreia, entendeu? E é o que todo mundo reclamava. Então o que a gente fez:
diminuiu a porcentagem do dendê, não deixou de ter o sabor, o cheiro do dendê, mas numa fração menor né, a
gente procurou compensar nos outros recheios, como compensa o dendê no vatapá, compensa o dendê na farinha
de peixe, no molho de camarão, tendeu? Então você distribuiu o dendê, todos em um só. (Oxalá)
Na Bahia ele não
é
Eles não
batem a massa
Entendeu?
então
a gente foi adaptando ao nosso jeito
então
assim
muitos baianos não gostam
mas os mineiros só gostam desse. (Oxumaré)
Além destas modificações no processo de produção, o “acarajé mineiro” também incorpora
outras variações de recheio.
Tem com carne de siri
que a gente inventou pra colocar no acarajé
que é carne de siri
que é uma delícia
e o pessoal come e adora
Tem o camarão sem casca
e por aí vai (Nanã)
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O “acarajé mineiro”, ao ter sua receita modificada revela não só a adaptação ao gosto dos
mineiros, mas um afastamento da sua “filiação divina”. Cantarino (2005) aponta, por
exemplo, que na Bahia, a comercialização do acarajé reconhece e respeita a “ancestralidade
santa” que legitima e autentica o acarajé.
Mesmo ao ser vendido num contexto profano, o acarajé ainda é considerado, pelas
baianas, como uma comida sagrada. Para elas, o bolinho de feijão-fradinho frito no
azeite de dendê não pode ser dissociado do candomblé. Por isso, a sua receita,
embora não seja secreta, não pode ser modificada e deve ser preparada apenas pelos
filhos-de-santo. (CANTARINO, 2005, p.119)
Desfeito de sua “mágica e santidade” o “barraqueiros do acarajé mineiro” têm a legitimidade
de seu negócio atestada e reconhecida pelo mercado, alcançando desta maneira o status de
empreendedores.
O empreendedor é alguém com capacidade de estabelecer objetivos e encontrar
oportunidades de negócios, sendo que para isso faz uso de sua criatividade e
conhecimento do ambiente no qual está inserido. (FILION, 1999).
A história, ou melhor, esta história, encontra ressonância na narrativa de legitimação do
capitalismo neo-liberal, que institui o mercado como instância máxima de legitimação e
capacitação da gestão. Ao modificar o modus operanti do negócio acarajé, os mineiros da
Feira Hippie reforçam a legitimidade do seu negócio, operando dentro das regras do
marketing, que pressupõe a adaptação e atendimento das necessidades do mercado e a
construção de um posicionamento diferenciado em relação ao negócio da comida de rua.
Olha
o acarajé já construiu uma história em Belo Horizonte
entendeu?
E
como aqui na feira
é um lugar frequentado por gente de todos os cantos do país
né
é
o quê que na minha opinião
na minha visão
o quê que aconteceu
né
é
virou uma tradição do mineiro
vir comer acarajé na feira
porque ele vai na Bahia
e detesta o acarajé da Bahia
e fala que acarajé bom
é em Belo Horizonte. (Oxalá)
As aproximações e afastamentos, contraditórios a princípio, revelados nesta história, nos
mostram a riqueza e a diversidade que é o fazer “negócios” no Brasil da modernidade. O
negócio “acarajé mineiro” contado pelos barraqueiros da Feira Hippie evidencia uma prática
de gestão intuitiva e cotidianamente experimentada e vivida que se apropria de uma tradição
culinária de “outras terras”, que ao mesmo tempo, afasta tradições religiosas e culturais, mas
mantém territoriedades simbólicas, que mercadologicamente aproximam e posicionam o
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negócio como “original”. Ou seja, o “acarajé mineiro” é “aquele mesmo” da Bahia, que
identifica originalmente e simbolicamente o produto, mas também é “outro”, à medida que é
mais adequado, mais adaptado ao gosto e comportamento do mercado local. Afirmar e negar,
neste sentido, são “dois lados da mesma moeda”, são características antagônicas, constituintes
e formativas do “acarajé mineiro”. Esta síntese dialética, constituída através da modificação
do produto acarajé se configura, como elucidado na narrativa de Oxalá como uma evolução,
reconhecida inclusive pelos próprios baianos.
[Vocês então fizeram uma adaptação do acarajé baiano para o acarajé mineiro?]
É
com certeza
Hoje tem baiano que fala que o acarajé mineiro está muito mais saboroso que o acarajé baiano
porque o acarajé baiano tem uma tradição
e o acarajé mineiro tem uma evolução segundo eles.
O santo despido e o bolinho refeito – da mágica divindade à bênção divina
É importante retomar aqui uma parte dessa história… Ao desembarcar nas Minas e deixar seus
“poderes de santo”, o bolinho se torna uma tática de sobrevivência (CERTEAU, 1994) de
famílias inteiras. Por meio de representações sociais, as táticas são [re]construídas no
cotidiano e o acarajé, deixa de ser uma iguaria da ralé africana para se tornar uma fonte de
transformação social, por meio da qual, famílias inteiras buscam formação universitária e
[re]constroem posições sociais. Mas, muito mais do que isso, para chegar a este status, o
acarajé precisou se travestir. Foi preciso se despir da divindade para ser comida do Senhor.
Nesse processo de se tornar “acarajé mineiro”, além da “evolução” na produção da iguaria,
como relatado por Oxalá, muitos símbolos do Candomblé também foram apagados ou
assumiram outra função simbólica em relação ao bolinho.
Na verdade
a família
quase toda
mexe com acarajé
e são evangélicos (Iemanjá).
A história do acarajé nas Minas, nos parece a história da família, da grande família, cuja
figura central é Dona Inácia. Esta família, refaz o bolinho da baiana, com um sabor bem
mineiro. E, para além do tempero, alguns símbolos também se tornam bastante aparentes.
Figuras 5, 6 e 7 Barracas de acarajé da Feira Hippie
E esses símbolos começam, de fato, pela aparência. Em 2005, o Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico e Cultural (IPHAN) tornou o preparo da iguaria, patrimônio imaterial da
cultura brasileira (NADALINI, 2009) e, também o ofício das baianas do acarajé
(CANTARINO, 2005). De acordo com o IPHAN (2015), a produção e o comércio do acarajé
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é predominantemente feminina. O vestuário das baianas, característica dos ritos do
candomblé, estabelece também um forte elemento de identificação desse ofício, sendo
composta por turbantes, panos e colares de conta que simbolizam a intenção religiosa das
baianas. Além destes adereços, Lody (2007) acrescenta que faz parte do vestuário típico das
baianas de acarajé a saia, a bata, o camizu, e os brincos.
Mas, na Feira Hippie, a história é outra. As “baianas do acarajé” se despiram desses símbolos
numa clara tentativa de se desvincular simbolicamente do Candomblé. E, por outro lado,
refizeram o bolinho com outros “ingredientes simbólicos”. De acordo com Santos (2013, p.
44), a partir dos anos 1970, aconteceram muitas mudanças em torno do rito de preparo e
venda do acarajé como “o surgimento dos ‘baianos de acarajé’, a comercialização da massa
pronta para fazer o bolinho, o aparecimento das baianas evangélicas que vendem o ‘acarajé do
Senhor’ ou ‘bolinho de Jesus’”. Estas mudanças também foram observadas nos “tabuleiros”
da Feira Hippie.
O acarajé deixa de ser comida de santo e se transforma em um meio de sustento para a família
evangélica que já não usa a vestimenta de baiana, própria do candomblé, e que incorpora em
suas narrativas a preocupação com o negócio. Agora não mais importa os elementos do
Candomblé, pois o avental, o jaleco e o boné são símbolos mais importantes, porque denotam
limpeza e higiene e, para legitimar esse afastamento simbólico, o bolinho é refeito sob a ideia
de que é isso que os clientes procuram, limpeza e não religiosidade afro.
A gente tá sempre trocando [a roupa de trabalho]
por exemplo
hoje
tá todo mundo uniformizado de um jeito
né
A hora que a gente acha necessário
a gente tá trocando a roupa de todo mundo
está trocando a vitrine expositora [da barraca]. (Oxalá)
Figuras 8 e 9 Vitrines expositoras das barracas da Feira Hippie.
[O cliente diz] Nossa
mais essa barraca sua está limpinha
Quer dizer
né
já comeu aqui
pegou dois
quer dizer
né
eu volto naquele ponto
a higiene
né
a qualidade
né
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eu acho que é isso (Oxossi)
A limpeza, inclusive, parecer ter duplo sentido: a higiene e a retirada do santo, da comida.
Esta duplicidade de sentido aparece no momento em que um pastor, baiano do acarajé, faz um
sinal de bênção sobre o bolinho, antes de entrega-lo ao cliente, como se nesse momento, a
comida deixasse de ser de santo e se tornasse o bolinho do Senhor, do Santo.
Ao banir o simbolismo religioso por trás do acarajé, por ser “coisa do encardido”, banimos
muito mais. A comida de santo, própria da cultura africana, é mais do que “coisa do
encardido”, é coisa de negro, é coisa da margem e marginalizada, é coisa ordinária e,
portanto, menos legítima. E, por isso, é preciso despi-lo desse sincretismo e dar a ele ares
mais sagrados e menos profanos.
Mas a história não acaba por aí. Se por um lado o acarajé precisa ser “higienizado” do
Candomblé, por outro, os símbolos religiosos constituem, para algumas baianas do acarajé
nas Minas como uma estratégia competitiva de mercado, uma vez que
Os clientes
exige que a gente use a roupa [de baiana]
chama atenção
da uma imagem de ser
uma coisa original (Iansã).
As pessoas chegam aqui e falam assim
“Ah eu vou na baiana
mas eu não vou naquela ali
porque não está vestida de baiana
Eu quero uma baiana”
Talvez a pessoa nem seja baiana
que não é o meu caso
eu sou baiana
toda vida eu andei assim
hoje eu não uso mais as saias
porque com esse calor
é muito pesado
mas o negócio na cabeça [turbante] e a blusa [bata]
eu uso até hoje (Nanã).
Essa é outra história interessante. As baianas da Feira Hippie sentem necessidade de
reforçarem suas origens baianas, mas em termos territoriais, ou seja, ser nascida na Bahia.
Mas por outro lado, negam o ser baiana, filha de santo. Nenhuma delas segue o Candomblé. A
maior parte se dia evangélica, porém, como o acarajé é uma comida típica da Bahia, todas elas
sentem a necessidade de manter uma relação com o estado baiano. E o uso dos adereços da
baiana é meramente estético, não guarda em si nenhuma relação com a religiosidade. Assim,
os evangélicos “baianos do acarajé mineiro” retiram o resto de santo que tinha na comida ao
[re]construir outra noção do que significa o bolinho de feijão fradinho. Então, o bolinho
mágico se torna, simbolicamente, abençoado.
Nós somos evangélicos
nada a ver uma coisa com a outra [religião com o preparo do acarajé]
têm pessoas que
às vezes
não come acarajé
por medo
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Ele observa
e então
sai andando
sei que alguns têm medo
dizem
“Não, a gente tem medo e tal”
Porque acha que é algo sacrificado
aí
nada a ver uma coisa com a outra
têm pessoas que tudo bem
que às vezes
envolve pelo lado da religião
para questões de venda
Simplesmente
eu peço a Deus
que abençoe o meu trabalho
e pronto
Para mim é só o alimento (Iemanjá).
Figuras 10 e 11 – O salmo 33 estampado em várias faixas nas barracas de acarajé.
Mesmo aqueles que usam algum símbolo do Candomblé, como o turbante, no caso da senhora
da imagem acima, este elemento é [re]incorporado sob outra perspectiva. Aqui ele deixa de
ser um elemento de identificação religioso para se tornar um elemento de marketing. Essa
história, inclusive, está muito relacionada à ideia de originalidade. O acarajé é da baiana,
então, se você quer um produto de verdade, pode vir que a “baiana” te serve. E, por outro
lado, há um contraponto em relação a esta preservação do original. Afinal, a origem e a
originalidade da iguaria é o Candomblé e tem gente que “acha que é algo sacrificado”. Então,
esses elementos são ressignificados e começam a fazer parte de outra história. O “acarajé
mineiro” não tem nada a ver com o Candomblé ou com os ritos da Umbanda, muito pelo
contrário, ele é abençoado pelo Senhor e se torna “só o alimento”, revestido pelos dizeres
bíblicos de prosperidade àqueles que temem a Deus.
Moral da história – Para empreender, eu desvisto um santo para vestir outro e coloco
um salmo para Deus abençoar
Ao [re]contar a história do acarajé mineiro, quisemos contar a história do empreendedorismo
no Brasil. Empreender nessas terras nunca foi tarefa fácil. No caso do acarajé, o bolinho
precisou deixar de ser mágico, comida de santo, para que pudesse ser comercializado por
homens, evangélicos e que não cultuam a religiosidade afro. Porém, ao contar essa história,
nos deparamos com muitas outras histórias que perpassam e tocam o acarajé. Há aqui a
história da ralé brasileira (SOUZA, 2009), do escravo, do negro e da margem.
O bolinho mágico chegou ao Brasil de navio negreiro. Ao aportar na Bahia, se tornou uma
atividade exclusiva das escravas de ganho e, anos mais tarde, quando veio para Minas, na
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bagagem de Dona Inácia, ele passou a ser o sustento de famílias inteiras. Mas para que o
bolinho se tornasse abençoado, foi preciso arrancar dele o que ainda possuía de santo. Nas
Minas, ele perdeu seus símbolos religiosos e o bolinho de Iansã se tornou o bolinho do
Senhor.
Como vimos, não são exclusividades mineiras os baianos do acarajé e evangélicos preparando
a iguaria. Essas mudanças já vêm acontecendo, até mesmo na Bahia, desde a década de 1970.
O movimento que percebemos é que essa apropriação do bolinho, próprio do Candomblé e
das baianas, filhas de santo, passa pela história do negro no Brasil. Ao tirar o santo do acarajé,
retiraram da comida todo simbolismo e sincretismo religioso que ele guardava. E para tornalo aceito, ele deixou de ser comida de escravo e passou pela “higienização” da religião negra.
Para que o acarajé se tornasse “comida de todos os santos”, ele precisou ser limpo dos
resquícios negros que ele carregava.
Houve então uma destruição das raízes, da cultura e da religiosidade negra, e o acarajé se
traveste de “bolinho de Jesus” ou “bolinho do Senhor”. Assim, tiraram do acarajé, aquilo que
ele tem de mais marginal: ser do Candomblé. Em outras palavras, essa “limpeza” significou
uma apropriação do acarajé – comida de santo, tipicamente baiana, própria dos escravos e do
Candomblé – que culmina na ressignificação cultural do preparo e comercialização do
bolinho. O momento de apropriação acontece de forma mais evidente em duas situações: na
feitura do acarajé, pelas “baianas evangélicas”, e na modificação da receita original, tanto no
modo de preparo quanto nos acompanhamentos que passaram a obedecer o paladar dos
mineiros. Ao se apropriar da receita e do modo de fazer acarajé, as “baianas do acarajé
mineiro” também abriram espaço para o fazer masculino. Não só as mulheres podem preparar
a iguaria, mas também os “baianos do acarajé mineiro”. E, a partir dessa apropriação,
acontece um fato importante nessa história: a ressignificação do acarajé nas Minas.
Nas bandas de Minas, o acarajé não é mais comida de santo. Afinal, o “fazer acarajé” já não
pertence à Iábassé e nem às filhas de santo. O bolinho é feito por baianos e baianas do acarajé
mineiro em suas barracas. Do rito, nada preservam. Mas há elementos novos: o jaleco e o
boné demarcam uma nova forma de limpeza, não mais destinada aos santos, mas aos clientes;
a religiosidade afro cedeu espaço aos salmos bíblicos e a oferenda aos deuses se travestiu na
bênção de Deus. E o que sobrou disso tudo? O bolinho do Senhor, ainda chamado acarajé,
mas que não passa de alimento. Alimento abençoado por Deus, para que não haja nenhum
medo de ser “coisa do encardido” e nem “coisa de escravo”. Porém, é importante ressaltarmos
que não é a comida que se torna evangélica, mas os “novos baianos do acarajé mineiro” viram
nessa apropriação e ressignificação, uma oportunidade de negócio.
Então, ao silenciar a negritude do acarajé, ele foi “clareado” e deixou de ser próprio da ralé.
Esse movimento de deixar a senzala também foi observado por nós no momento em que o
acarajé sai do “tabuleirinho” e da informalidade e ganha uma barraca, ou melhor, barracas que
passaram a abrigar famílias inteiras. Ao se tornar um bolinho “branqueado”, o acarajé se
transforma em negócio e deixa de ser marginal, mas sem deixar de ser ordinário. Ou seja,
dentro da história do acarajé, temos também a história de um povo empreendedor. Os “novos
baianos do acarajé”.
Aqui, cabe uma pequena pausa para lembrarmos que não se trata aqui de contar a história do
vencedor e do grande empreendedor de sucesso. A história que estamos contando sai da
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senzala, mas não chega à casa grande. É uma história de empreendedorismo, mas não
chegaria a uma capa de Você S.A ou Exame. Afinal, estes sujeitos seriam empreendedores ou
“viradores”? E sendo um ou outro, deixaram de ser comuns (MARTINS, 2008), ordinários?
Como questiona Lemos (2007, p. 84),
Somos um povo empreendedor ou tão-somente “nos viramos” para sobreviver e
enfrentar as adversidades? E, se “nos viramos”, isso nos torna empreendedores de
“segunda-classe”? Ser empreendedor no Brasil é bom ou ruim? Vício ou virtude?
Quais as raízes culturais que nos ajudam a entender nossa prática empreendedora e o
juízo que fazemos dessa prática?
Essa história nos mostra que nossas raízes culturais podem dizer muito sobre nossa formação
atual. Por isso, o olhar para o passado é tão importante. O processo de gestão não pode ser
visto como algo a-histórico e atemporal. Ser empreendedor na Feira Hippie é reflexo de uma
luta da senzala e isso não torna os “novos baianos” empreendedores de “segunda-classe” e
também não deixam de ser “viradores”. Mas se eles tivessem mantido os ritos e símbolos
negros e marginais em seus acarajés, conseguiriam se tornar empreendedores? Por que
precisaram tirar do acarajé o resto de santo que ele tinha? Essas são reflexões que só são
possíveis pela historicidade do movimento construído pelos “novos baianos”. A gestão é
também histórica e processual. Um contínuo de construção e reconstrução. E esta é a
contribuição deste trabalho: olhar para o processo de se tornar empreendedor, o processo de
gestão e como a gestão acontece naquilo que é ordinário, comum, cotidiano. Ao analisar
histórias e narrativas, temos a possibilidade de conhecer e compreender os processos tanto de
apropriação, quanto de significação e ressignificação. E são esses processos que constroem a
gestão. A gestão não é algo engessado e pronto, um one best way, mas sim um contínuo
congelamento, descongelamento e recongelamento. Uma simples história, como essa que
contamos, pode contar [e conta] muitas outras histórias. Aqui, por exemplo, o acarajé deixou
emergir a história de evangélicos, empreendedores/viradores, da gestão, da Feira Hippie, de
uma ralé histórica, que são os negros no Brasil, entre outras histórias que serviram de plano
secundário para o desenvolvimento da história do acarajé nas Minas. Por isso, o contar
histórias não deve ser um padrão a ser seguido. Deve ser um momento de [re]construção, com
pontos de continuidade, descontinuidade e rupturas, como no caso do acarajé. Não há um
modelo, essa construção que fizemos é proposital, para mostrar que o contar histórias [mesmo
de gestão] é um processo fragmentado.
Diante disso, ressaltamos que, nessa história que estamos contanto, a figura do sujeito
ordinário é central, tanto quanto o acarajé. Aqui, vimos, como pano de fundo, as táticas
empreendidas pelo indivíduo comum que utiliza da informalidade como forma de
[sobre]viver, e que constrói nesse não-lugar (AUGÉ, 1994) uma forma de se inserir no
mercado de trabalho. Mesmo saindo da informalidade, o sujeito ordinário precisa construir
cotidianamente táticas (CERTEAU, 1994) para se manter no mercado e, diante disso, se
apropria do produto do outro e o ressignifica como seu. Para tanto, ele se sujeita às leis
mercadológicas e à regulamentação fiscal, mas não deixa de ser um negócio ordinário. E é no
cotidiano que ele [re]constrói táticas subversivas para driblar as adversidades.
Essa [re]construção é o plano que dá sustentação para toda essa história. Para vender acarajé,
uma iguaria típica da Bahia, os mineiros se tornaram baianos, ou arranjaram alguma raiz
baiana, mesmo que essa raiz fosse tão profunda que tivesse apontado no norte de Minas. A
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baianidade, não territorial, mas da filiação de santo, foi silenciada nessa história, afinal, isso
não é “coisa de Deus” e para se tornar sagrado, é preciso clamar pela bênção de Deus sob o
trabalho. Em outras palavras, ser “baiana do acarajé mineiro”, nada tem a ver com ser nascida
na Bahia ou ser filha de santo, mas sim, ser filha de Deus e fazer bolinhos bentos.
A origem baiana dessa história parece ser Dona Inácia e seus descentes. Mas como o “fazer
cotidiano” se tornou “fazer negócio”, passa pela gestão ordinária (CARRIERI, 2012;
JOAQUIM, 2014), fundamentada no saber prático. Como percebemos na fala a seguir, de
uma neta da precursora.
Aí
ela ensinou a gente a fazer
e a vender
e começamos (Ibeji).
A arte de fazer acarajé foi passada de geração em geração, e se tornou um meio de
sobrevivência familiar. Do tabuleiro de Dona Inácia veio a criação dos filhos. Os filhos já
pegaram o tabuleiro farto, a ponto de ter se transformado em uma barraca. A barraca foi
crescendo e se multiplicou. E Dona Inácia foi ensinando o ofício aos descendentes. Ela não
dividiu apenas a arte de fazer, mas também a arte de vender acarajé em terras mineiras, não
acostumadas com a iguaria, até que o prato caiu no gosto dos nativos. Esses ensinamentos
geracionais, a partir do saber prático, são as bases da gestão ordinária. Foi a partir do banal,
do comum, que esses sujeitos se construíram empreendedores/viradores. Acreditamos ser
fundamental olhar para a gestão a partir do cotidiano, pois como bem afirmam Carrieri,
Perdigão e Aguiar (2014), é pelo estudo do cotidiano, que se evidencia como os grupos
sociais singularizam o seu fazer, suas ações, seu consumo e produção, conformando um
espaço de interpretações sobre suas estratégias e táticas socialmente construídas.
É importante ressaltar que decidimos contar esta história não por ingenuidade, mas como uma
forma de questionar o mainstream a partir daquilo que é local e marginal. Nosso intuito é
provocar a reflexão teórica sobre a administração não tradicional, que está para além dos
handbooks. Nossa concepção é mostrar, a partir do movimento de deixar a senzala, deixar de
ser ralé, e chegar ao status de empreendimento, como o acarajé e as narrativas construídas a
partir e por meio dele, é um meio legítimo para se falar sobre organizações e gestão.
A comida de santo, própria dos escravos, salta do tabuleiro da Dona Inácia para a história da
gestão. E, por meio do saber prático, o ofício cria famílias inteiras e continua criando novos
membros dessa grande família. O acarajé deixa de ser próprio de uma ralé por meio do
discurso central do mainstream do empreendedor e da economia criativa. Mas ele só faz essa
passagem a partir do ordinário e do marginal. Por isso, escolhemos centrar nossa discussão
nessa marginalidade, para mostrar a importância do local, do banal e do ordinário como
expressão do anti-mainstream. Em outras palavras, a mágica de toda essa história não está em
contar a história dos vencedores. Não se trata de contar ou reproduzir as capas de Você S.A e
de Exame, mas sim de contar os reversos de Iansã e Ogum.
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i Quizila é um termo que faz parte do português brasileiro: (var. de quijila, quimbundo. kijil, “preceito,
mandamento, regra”) S.f. 1. Repugnância, antipatia. 2. Aborrecimento, impaciência, chateação. 3. Desavença,
zanga, inimizade, desinteligência. 4. Rixa, briga, pendência (var. quizília). Quizilar: v.t.d. 1. Fazer quizila a;
importunar, aborrecer, zangar. Int. e p. 2. Incomodar-se, aborrecer-se, irritar-se, zangar-se (f. paral.: enquizilar).
Quizilento: adj. 1. Que faz quizila. 2. Propenso a quizilar-se (HOLANDA 1999:1439).